Por Moema Ameom
Gosto de observar meus pés.
Neles estão escritas densas histórias da minha existência.
Lembro-me da época em que eram considerados “chatos”; “pé de
povão” como dizia minha mãe; não tinham classe nenhuma.
Olhava para os pés do meu pai: idênticos aos meus. E como era
elegante aquele mestiço filho de português com índio!
Por serem, além de “chatos”, caídos e tortos, receberam
muitos corretivos; botas, ferros, massagens fedorentas e repugnantes com sebo
de carneiro derretido no fogão em uma latinha fétida. Repugnantes e dolorosas
lembranças. De bom ficaram as caminhadas na areia da praia de Copacabana, onde
eu morava, levada pelas mãos fortes do caboclo que teimava em me fazer viver de
forma diferente as deficiências dos meus pés. Mas sua técnica era considerada
errada por minha mãe, o que começou desde então a me jogar na dúvida sobre o
que deveria ser O Prazer.
O tempo levou-me ao Ballet Clássico, um desejo que assumi
como sendo meu mas que certamente era familiar desde que minha avó viu a Anna Pavlova
dançando. Eu seria sua substituta! Sem sombra de dúvidas! O veredicto daquela
que deveria ser minha primeira professora, Madeleine Rosay, nos idos de 1967,
fez minha mãe estremecer: ”Com estes pés e este físico (eu era muito magra e muito
alta) ela jamais será bailarina!”
Envolvida por soluços e muitas lágrimas ouvi a voz materna:
”Você será o que quiser ser. Faça por onde corrigir estes pés e o seu físico.”
A saga começou aos 7 anos de idade.
Torturei por demais meu corpo principalmente quando surgiram
as sapatilhas de ponta e eu não conseguia nem de leve alcançá-las. Minha
professora na época – Julia Queiroz – enfatizava o veredicto: ponta nem pensar! Desista!....ao longe a voz repetia: Insista!
Mas eu dançava na praia, ao som das ondas do mar e me sentia
feliz! Meu pai marcava ritmo com as mãos e dizia “dança mulata, dança!” Adorava
dançar ciranda, jongo e samba ao ritmo do seu batuque manual! Às vezes cruzava
com D. Nina Verchinina e seus cães e ela sempre gritava ao longe: ”Dança Isadora!”
Eu não entendia porque trocava meu nome; mais tarde, quando fiz aulas com ela,
soube que se tratava de uma referência à Isadora Duncan.
E lá fui eu...massacrando e brincando com meus pés.
Conquistei as pontas sem muita segurança. Conquistei o Ballet Clássico sem
grandes paixões. Conquistei um certo lugar no cenário carioca como bailarina.
Tudo muito dolorido. Mas havia momentos de luz: bailes de carnaval, desfiles
nas Escolas de Samba, Cirandas, Folias de Reis no Morro da Mangueira; Jongo na
Serrinha, Danças Livres ao som dos ventos. Até entrar para a Escola de Danças
Maria Olenewa (eu passei no exame!) e lá conhecer Lourdes Bastos e Klauss
Vianna. Passei a entender que técnica e dança podiam ser aliadas e não
inimigas. Dançar com os pés no chão e no palco era A Glória!
Assim meus pés começaram a trilhar caminhos distintos onde
seus ligamentos claudicavam entre elevações e torções desconhecidas. Aprendi
com Klauss a cuidar melhor de ambos, mas os massacres iniciais haviam feito
grandes estragos ligamentares; muitas dores me acompanhavam sempre.
O tempo passando fez-me re.Conhecer trajetórias interessantes
tanto na dança quanto na terapia; foram os pés que me levaram aos estudos
terapêuticos.
Para torná-los mais harmônicos e ressonantes em seus males percorri
estudos infindáveis buscando entender de alguma forma o que significavam seus
movimentos e propostas.
Quando meus filhos nasceram e pude ver espelhado neles
detalhes parecidos com os meus, passei a trilhar novas propostas de
conhecimento. Como professora de Ballet Clássico tornei-me, primeiramente, professora
de Dança onde passei a aplicar tudo o que colhi na trajetória de aluna; os SIM
e os NÃO.
Com o fluxo da vida, acabei por assumir a postura de
Educadora onde os estudos antropológicos, misturados aos terapêuticos, deram-me
MOITAKUÁ onde a Dança Essencial
ganhou espaço dentro da sua formação. Criei um método de ensino para uma Escola
de Dança onde pretendi orientar sentidos a uma harmonização plena com as varias
técnicas que moldam o Físico. Pura pretensão! Distúrbio do Ego!
Hoje cuido dos meus pés. Vejo-os com formas equilibradas
passando-me mais segurança emocional; aprendo com eles a ver minha vida passar
... simples...mente!
27/10/2013