Atualmente,
sempre as segundas e quartas, saio de casa para ir ao Rio. Como não possuo
carro e não dá para ir de triciclo devido ao tempo relativo à distância,
utilizo três horas para chegar ao meu destino. São nove horas de locomoção para
ministrar aula de uma hora e meia para uma ou, às vezes, duas pessoas.
Invariavelmente
ouço palavras interessantes ao sair de casa: “Cuidado com os arrastões.” “Será
que vale a pena se sacrificar tanto?” “Nunca haverá reconhecimento à altura”.
“Fica correndo risco de vida pra ganhar o que? Quanto lhe pagam?”
Hoje
resolvi selecionar, catalogar e registrar algumas das muitas frases
“estimuladoras” que compõem minhas manhãs, utilizando-as como tópicos para o
desenvolvimento de idéias. Talvez pudesse chamá-los de capítulos e assim o farei.
- Capítulo I - Cuidado com os
arrastões
Remeto-me
a processos genéticos e hereditários que escrevem minha história molecular,
focando-me em minhas avós materna e paterna. Se por um lado minha avó Céo
ensinou-me a sublimar dificuldades fazendo uso da arte para transformar
problemas em movimentos criativos, minha avó Sylvia (qual seria seu nome de
batismo na tribo dos Goitacás?), deu-me garras e ímpetos para cuspir caroços
que entupiam minha carótida.
Gosto de relembrar os raros momentos em que as via
dialogar. Poderia dizer que estes encontros me colocavam diante do Paraíso e o
Inferno; Deus e o Diabo; Claro e Escuro; Intelecto e Primitivo, sem saber de
onde vinha qual deles e para onde iam. Minha vó Céo sorria; vó Sylvia
gargalhava. Como ambas se respeitavam mutuamente em suas diferenças –
aprendizado maior - eu, redigindo este texto, vejo-as diante de mim brincando
com as emoções que delas brotavam. Uma estimulando a outra.
Mas,
o que tem isto a ver com arrastões?
Fico
imaginando o que faz um povo cujas raízes indígenas, onde o sensorial, a intuição,
a percepção e sensibilidade são tão intensas e ainda tão vívidas nos processos
cognitivos, ficar totalmente paralisado diante de movimentos que solicitam
reações imediatas.
O
que fizeram com nossos dentes? Nossa memória?
Nosso desejo de assumir a identidade onde a etnia produz tanta potência
medular? Que rede é esta que jogaram sobre nosso berço esplêndido? Uma rede
paralisante tal qual a que é jogada sobre mim ao sair de casa?
Eu
a denomino “rede dos medos planetários” ou simplesmente Holofobia, termo
aprendido com Dr.Stèphano Sabetti. Medo de pesquisar sentimentos profundos
provenientes da composição holística do Ser.
Medo
de olhar para o próprio umbigo descobrindo histórias desagradáveis; síndrome da
criança birrenta que esperneia para ganhar o que quer, como quer e no
tempo desejado. Se a bala não for aquela do papel cor de rosa, não serve;
utiliza-se litros de energia para buscar o doce escolhido enquanto muitas balas
perdidas vão passando e se encontrando em seres alienados da sua capacidade
interna de ir para o fogão fazer muitas e muitas balas coloridas para
dar,vender, distribuir e saciar o espírito.
De
onde vem esta impotência?
Seria
da plena desvalorização das potencialidades aqui encontradas pelos
colonizadores europeus, por estarem eles àquela época com a consciência tão
distante de seus sensos primitivos? Com matérias moldadas por valores distintos
dos que aqui encontraram como será que se sentiram ao se depararem com corpos
nus, olhares incisivos, pés e mãos enormes, peles pintadas? Vendo anotações da
época lê-se: selvagens. Nas entrelinhas: incultos, incapazes de criarem
conceitos próprios. Irracionais.
Minha
avó Céo, culta, valente, guerreira, que amava o Brasil e por ele lutava (foi
enfermeira de guerra), estremecia diante da potência vocal de Sylvia. Hoje,
relembrando-as, entendo os tremores que percebia nela quando a gargalhada
ecoava. Depois eu ouvia de minha mãe:”Rir assim é falta de educação.”
Educação!
Serão
os arrastões conseqüências de uma educação moldada em padrões que não atingem a
alma deste povo?
“Cuidado
com os arrastões” é uma frase que orienta e sendo assim, educa. De que maneira
atinge uma alma sensível em momento de partida para uma conquista ou
realização? De minhas observações pessoais, colho in.forma(a)ções de que
desestabilizam as captações sensórias criando couraça de defesa que afastam os
campos sensitivos e primitivos dos movimentos motores. Perdem-se os defensores
naturais do Sistema. Se ganha violência. Lanças, facas, armas e agressões
gratuitas surgem como único caminho de preservação da vida.
No
meu caso a névoa encobria as ações e sons sussurrantes cuspiam reações
incoerentes que me levavam a naufragar nas próximas ações.
Cuidar
com atenção requer equilíbrio emocional. Como? “Não tenho tempo pra temer a
morte” era um mote repetido junto com “Cale-se! Afasta de mim este cálice!” Sem
temer, ou brigando para não se inebriar, por onde andava a consciência? Bem
longe do fluxo vital que nutre o Ser.
Como educar?
Como orientar seres humanos, brasileiros
ou não a despoluírem seus rios internos onde águas límpidas aguardam para
mergulhos diários?
Cenas
do próximo capítulo.
- Capítulo II
– Será que vale a pena se sacrificar tanto?
Quando
rompemos a rede de acomodação experimentando movimentos diferentes dos já
conhecidos, verdades internas vêm à tona. É como revirar a terra para plantar
sementes. Surgem minhocas, formigueiros subterrâneos, raízes submersas. A
ilusão sobre a produtividade daquele pedaço de terra desvanece. Surge sua real
potência e precisamos nos dispor a vê-la de forma bem diferente da nossa
imaginação.
O
que acumulamos, armazenamos, guardamos em nossas teias internas, quando
estimuladas por motiv.ações diferentes do comum, trazem sensações desagradáveis.
Aflições escondidas; raivas
esquecidas. Estava tudo tão bem arrumado, ou seja, desarrumado na tranqüilidade
aparente. Somos capazes de aprender tudo em nome da paz interior, inclusive a
nos sentir confortável no desconforto.
O
mais interessante de ser observado neste jogo da vida é o processo
respiratório. Sempre imaginamos que estamos respirando muito bem. E não? Lógico
que sim diz a razão. Ou será a lógica? Muitas mensagens são enviadas para o
imaginário que, sendo a fonte artística do Ser, cria e recria idéias múltiplas sobre
os movimentos do ar. Os lados encefálicos, geralmente se debatem entre certo e
errado inibindo as vibrações harmônicas da alma. Sentimentos se deturpam;
bloqueiam articulações desviando o esqueleto ósseo.
Desvendar
os mistérios da essência é uma tarefa onde a beleza e a pureza encontram-se no
ato de experimentar, ousar, arriscar revirar a terra confiando no poder transformador
da visão, sensação, percepção e consciência. São brincadeiras do espírito que,
para educarem o Sistema precisam de limites objetivos provenientes de
orientações apreendidas. Aprender a reconhecer o que ainda desejamos aplicar na
formação do momento descartando o que foi usado no tempo anterior, é um
trabalho tão árduo e gratificante quanto cuidar da flor e do fruto para
alimentar o corpo.
Vale
a pena?
Será
sacrifício percorrer caminhos desconhecidos duas vezes por semana? São muitas
dúvidas, muitas ondas emocionais a serem vivenciadas.
Ensinaram-me
os colonizadores que isto gera sacrifício; podemos ser crucificados se
insistirmos em criar novos conceitos. O medo do chicote arde a pele. Os pregos
furam as mãos. As dores somáticas fazem os ossos dançarem em agonia.
Esbravejam. Tremem a terra.
Como
deixar fluir o desejo de experimentar?
Em
estudo neurológico leio: ”O encéfalo só absorve aprendizado através da vivência
e experiência.”(Robert Lent)
Eu sempre acreditei intuitivamente nesta
premissa, mas nem assim conseguia conviver bem com experiências que eu via como
sendo negativas, desagradáveis, ruins ou feias, principalmente quando as
percebia em entes queridos.
A
vontade era segurar, prender, amarrar, mesmo que apenas usando a frase:
”
Vale a pena tanto sacrifício?”
O
mar das dúvidas sufoca, cria nós na comunicação; trava o som, coíbe palavras,
perturba a razão e a lógica por alterar ondas emocionais; sentimentos. O tempo
biológico perde o compasso, o ritmo, a harmonia; a melodia se deturpa.
Como
fazer para encontrar outra tradução para sacrifício? Ofício do sagrado?
Trabalhar
neste ofício dá prazer! Muito prazer! A sagrada labuta diária de cuidar da
plantação retirando as ervas daninhas, é compensa.dor. Mostra-nos processos de
super.ação. Faz-nos sentir o único poder capaz de nos manter vivos: o de nos
alimentar com nossa própria potência de realização.
Observar
as flores, colher os frutos e saboreá-los ao final do dia, nos faz sentir o
pulsar dos movimentos vitais.
Como
diz um certo anúncio:”não tem preço!”
No
meu caso particular, dentro do fato citado no prefácio, ainda existe o
exercício de percorrer longos caminhos a pé, testando movimentos articulares
que há bem pouco tempo estavam muito debilitados e machucados (tanto quanto
minha alma). Ver-me e sentir-me locomovendo-me sem dor, podendo harmonizar
ritmos internos/externos é motivo de muitos aplausos para mim; eu os produzo.
Somando
a isto, como venho recebendo belas orientações do Dr. Paulo Gusmão, incluo em
minhas autopesquisas o fato tentador de percorrer odores e visões que acordam
tentações remetendo-me a um passado que não quero mais in.mim. São drogas em
forma de guloseimas, prontas para corroerem minha saúde. Benditas experiências
com dependentes químicos como terapeuta que, transformadas em conhecimentos,
vêm em meu auxílio enquanto percorro a rua Voluntários da Pátria. Sou
voluntária no cuidado com os seres humanos a começar por mim mesma.
Tarefa
para esta brasileira que não desiste nunca, neta de Cléo e Sylvia.
Vale
muito a pena!
Que
venha o parto do próximo capítulo.
- Capítulo III –
Nunca haverá reconhecimento à altura.
A
palavra reconhecimento sempre me aponta o dedo dizendo: ”Conheça-te a ti mesma”
“Reveja seus atos, repense suas idéias, reorganize seus sentimentos, relembre
suas ações revisitando as reações; reconheça o minuto recém experimentado no
momento que está vivendo. Sinta o recuo das águas para perceber o tamanho da
onda.”
Quando atriz, participei da montagem do
Allegro Desbum ...” de Oduvaldo Vianna Filho ( Vianinha). Belo texto, peça
ousada com direção corajosa de José Renato. Convivi durante um ano com artistas
incríveis dentre eles Francisco Milani, Berta Loran e Gracindo Junior com os
quais minha personagem (Ênia) contracenava mais.Fui responsável pela preparação
corporal do elenco e, ao substituir repentinamente a Neila Tavares por motivo
de doença, acabei ficando seis meses em cartaz no Teatro Ginástico, RJ. Naquela
época a folga era apenas às 2as feiras sendo que aos sábados e domingos dávamos
duas sessões.
Portanto, aquele belo texto era repetido 9 vezes por semana.
As
palavras, com alguns acréscimos ou supressões devido a presença de censores,
eram as mesmas. Mas a intenção, dependia do que se captava da platéia. Era
necessário absorver o retorno e reconhecê-lo nas sensações corpóreas para dar o
“tempo” (time) exato da emoção.
Tudo
brotava fluidificante no momento da ação, porém muitos ensaios e árduo trabalho
eram necessários para produzir fluxo “natural” aos sentidos; treinava a razão e
a lógica da personagem para assumir alguém que não ouvia, via, percebia ou
sentia como eu.
De
minha avó Céo vinha a habilidade cênica. Da Sylvia a força simbiótica da
religião xamânica que ela professava. Fui aprendendo a conviver com
personagens; filha, atriz, bailarina, professora, coreógrafa, sobrinha, prima,
colega, mulher e mãe. Enfim, infinitos sensores processando meus movimentos
vitais em diversas direções.
Realmente
nunca haverá reconhecimento suficiente para suprir os anseios de das personas. Todas desejosas de serem
acariciadas, acolhidas, compreendidas, entendidas, amadas. De onde brotava o
desejo? Do meu desejo de ali estar. Os anseios? Dos movimentos expiratórios. A
angustia era causada pela in.Satisfação proveniente da in.Capacidade de
aprender a aprender comigo mesma.
Hoje,
relendo o que acabo de redigir (ou será re.digerir?), olho o caminho percorrido
pensando na “altura”.
Qual
será a altura do reconhecimento?
Será
relativo à grandiosidade do aprendizado?
Quando
me vejo diante de alunos, clientes, amigos ou parentes e revejo-me nas suas
conquistas das quais conscientemente participo de alguma forma, sinto-me
“alta”. Imensa. Gigantesca às vezes. Mas, quando falo em reconhecimento e
pessoas me vêem como sendo alguém que espera do outro algo que não seja
partilha e comunicação verdadeira, humanidade ou respeito aos meus sentimentos,
nestas situações torno-me minúscula.
Encolho-me para que a onda passe.
Há
um tempo sofria, ao me recolher adoecia; conseguia atenção cuidado e aplausos
com a doença. A cena ficava perfeita!
Mas
nunca fui muito chegada a drama; sempre gostei mais de alta comédia, gênero
teatral dos mais difíceis por ser aquele onde exercitamos o ponto do equilíbrio.
Ênia,
em sua cena de despedida, depois de conseguir se libertar da dependência do
amor doentio por Abujanra, dizia mais ou menos assim: “Vim me despedir” “Vai
pra onde?” “Vou viver minha vida.”
Pode
até ser que as palavras não fossem estas mas a emoção da cena ficou gravada no
fogo de meus ossos e a sinto até hoje a cada amanhecer. E, despertando-me,
busco sempre reconhecer o Allegro ma non troppo do grande desbundaccio
que foi e continua sendo meu belíssimo país, nem um pouco reconhecido em seus
valores reais.
Em
tempo: o título original que Vianinha colocou na peça foi “O Allegro Desbundaccio”
sabe-se lá por que, a censura trocou para “Allegro
Desbum...”
Deve
ter sido para aliviar o risco de vida que corríamos ao dizer o que constava do
texto original sob mira de revólveres da política vigente na época. Aliviar? Ou
instigar ainda mais nosso desejo de transgredir as ordens?
De
qualquer forma, ajudou-me muito a continuar na transgressão a fim de encontrar
prazeres que não têm preço; que me pagam com as moedas invisíveis do amor à
arte e à tudo que ela proporciona para minha ânima.
Adoro
me animar!