12 de outubro de 2015

PERCORRENDO CAMINHOS



Atualmente, sempre as segundas e quartas, saio de casa para ir ao Rio. Como não possuo carro e não dá para ir de triciclo devido ao tempo relativo à distância, utilizo três horas para chegar ao meu destino. São nove horas de locomoção para ministrar aula de uma hora e meia para uma ou, às vezes, duas pessoas.

Invariavelmente ouço palavras interessantes ao sair de casa: “Cuidado com os arrastões.” “Será que vale a pena se sacrificar tanto?” “Nunca haverá reconhecimento à altura”. “Fica correndo risco de vida pra ganhar o que? Quanto lhe pagam?”

Hoje resolvi selecionar, catalogar e registrar algumas das muitas frases “estimuladoras” que compõem minhas manhãs, utilizando-as como tópicos para o desenvolvimento de idéias. Talvez pudesse chamá-los de capítulos e assim o farei.

  • Capítulo I - Cuidado com os arrastões


Remeto-me a processos genéticos e hereditários que escrevem minha história molecular, focando-me em minhas avós materna e paterna. Se por um lado minha avó Céo ensinou-me a sublimar dificuldades fazendo uso da arte para transformar problemas em movimentos criativos, minha avó Sylvia (qual seria seu nome de batismo na tribo dos Goitacás?), deu-me garras e ímpetos para cuspir caroços que entupiam minha carótida. 

Gosto de relembrar os raros momentos em que as via dialogar. Poderia dizer que estes encontros me colocavam diante do Paraíso e o Inferno; Deus e o Diabo; Claro e Escuro; Intelecto e Primitivo, sem saber de onde vinha qual deles e para onde iam. Minha vó Céo sorria; vó Sylvia gargalhava. Como ambas se respeitavam mutuamente em suas diferenças – aprendizado maior - eu, redigindo este texto, vejo-as diante de mim brincando com as emoções que delas brotavam. Uma estimulando a outra.

Mas, o que tem isto a ver com arrastões?

Fico imaginando o que faz um povo cujas raízes indígenas, onde o sensorial, a intuição, a percepção e sensibilidade são tão intensas e ainda tão vívidas nos processos cognitivos, ficar totalmente paralisado diante de movimentos que solicitam reações imediatas.
O que fizeram com nossos dentes? Nossa memória?  Nosso desejo de assumir a identidade onde a etnia produz tanta potência medular? Que rede é esta que jogaram sobre nosso berço esplêndido? Uma rede paralisante tal qual a que é jogada sobre mim ao sair de casa?

Eu a denomino “rede dos medos planetários” ou simplesmente Holofobia, termo aprendido com Dr.Stèphano Sabetti. Medo de pesquisar sentimentos profundos provenientes da composição holística do Ser.
Medo de olhar para o próprio umbigo descobrindo histórias desagradáveis; síndrome da criança birrenta que esperneia para ganhar o que quer, como quer e no tempo desejado. Se a bala não for aquela do papel cor de rosa, não serve; utiliza-se litros de energia para buscar o doce escolhido enquanto muitas balas perdidas vão passando e se encontrando em seres alienados da sua capacidade interna de ir para o fogão fazer muitas e muitas balas coloridas para dar,vender, distribuir e saciar o espírito.

De onde vem esta impotência?

Seria da plena desvalorização das potencialidades aqui encontradas pelos colonizadores europeus, por estarem eles àquela época com a consciência tão distante de seus sensos primitivos? Com matérias moldadas por valores distintos dos que aqui encontraram como será que se sentiram ao se depararem com corpos nus, olhares incisivos, pés e mãos enormes, peles pintadas? Vendo anotações da época lê-se: selvagens. Nas entrelinhas: incultos, incapazes de criarem conceitos próprios. Irracionais.

Minha avó Céo, culta, valente, guerreira, que amava o Brasil e por ele lutava (foi enfermeira de guerra), estremecia diante da potência vocal de Sylvia. Hoje, relembrando-as, entendo os tremores que percebia nela quando a gargalhada ecoava. Depois eu ouvia de minha mãe:”Rir assim é falta de educação.”

Educação!

Serão os arrastões conseqüências de uma educação moldada em padrões que não atingem a alma deste povo?

“Cuidado com os arrastões” é uma frase que orienta e sendo assim, educa. De que maneira atinge uma alma sensível em momento de partida para uma conquista ou realização? De minhas observações pessoais, colho in.forma(a)ções de que desestabilizam as captações sensórias criando couraça de defesa que afastam os campos sensitivos e primitivos dos movimentos motores. Perdem-se os defensores naturais do Sistema. Se ganha violência. Lanças, facas, armas e agressões gratuitas surgem como único caminho de preservação da vida.

No meu caso a névoa encobria as ações e sons sussurrantes cuspiam reações incoerentes que me levavam a naufragar nas próximas ações.
Cuidar com atenção requer equilíbrio emocional. Como? “Não tenho tempo pra temer a morte” era um mote repetido junto com “Cale-se! Afasta de mim este cálice!” Sem temer, ou brigando para não se inebriar, por onde andava a consciência? Bem longe do fluxo vital que nutre o Ser.

Como educar?

Como orientar seres humanos, brasileiros ou não a despoluírem seus rios internos onde águas límpidas aguardam para mergulhos diários?

Cenas do próximo capítulo.

  • Capítulo II – Será que vale a pena se sacrificar tanto?


Quando rompemos a rede de acomodação experimentando movimentos diferentes dos já conhecidos, verdades internas vêm à tona. É como revirar a terra para plantar sementes. Surgem minhocas, formigueiros subterrâneos, raízes submersas. A ilusão sobre a produtividade daquele pedaço de terra desvanece. Surge sua real potência e precisamos nos dispor a vê-la de forma bem diferente da nossa imaginação.

O que acumulamos, armazenamos, guardamos em nossas teias internas, quando estimuladas por motiv.ações diferentes do comum, trazem sensações  desagradáveis. 

Aflições escondidas; raivas esquecidas. Estava tudo tão bem arrumado, ou seja, desarrumado na tranqüilidade aparente. Somos capazes de aprender tudo em nome da paz interior, inclusive a nos sentir confortável no desconforto.

O mais interessante de ser observado neste jogo da vida é o processo respiratório. Sempre imaginamos que estamos respirando muito bem. E não? Lógico que sim diz a razão. Ou será a lógica? Muitas mensagens são enviadas para o imaginário que, sendo a fonte artística do Ser, cria e recria idéias múltiplas sobre os movimentos do ar. Os lados encefálicos, geralmente se debatem entre certo e errado inibindo as vibrações harmônicas da alma. Sentimentos se deturpam; bloqueiam articulações desviando o esqueleto ósseo. 

Desvendar os mistérios da essência é uma tarefa onde a beleza e a pureza encontram-se no ato de experimentar, ousar, arriscar revirar a terra confiando no poder transformador da visão, sensação, percepção e consciência. São brincadeiras do espírito que, para educarem o Sistema precisam de limites objetivos provenientes de orientações apreendidas. Aprender a reconhecer o que ainda desejamos aplicar na formação do momento descartando o que foi usado no tempo anterior, é um trabalho tão árduo e gratificante quanto cuidar da flor e do fruto para alimentar o corpo.

Vale a pena?

Será sacrifício percorrer caminhos desconhecidos duas vezes por semana? São muitas dúvidas, muitas ondas emocionais a serem vivenciadas.

Ensinaram-me os colonizadores que isto gera sacrifício; podemos ser crucificados se insistirmos em criar novos conceitos. O medo do chicote arde a pele. Os pregos furam as mãos. As dores somáticas fazem os ossos dançarem em agonia. Esbravejam. Tremem a terra.

Como deixar fluir o desejo de experimentar?

Em estudo neurológico leio: ”O encéfalo só absorve aprendizado através da vivência e experiência.”(Robert Lent)

 Eu sempre acreditei intuitivamente nesta premissa, mas nem assim conseguia conviver bem com experiências que eu via como sendo negativas, desagradáveis, ruins ou feias, principalmente quando as percebia em entes queridos.

A vontade era segurar, prender, amarrar, mesmo que apenas usando a frase:

” Vale a pena tanto sacrifício?”

O mar das dúvidas sufoca, cria nós na comunicação; trava o som, coíbe palavras, perturba a razão e a lógica por alterar ondas emocionais; sentimentos. O tempo biológico perde o compasso, o ritmo, a harmonia; a melodia se deturpa.
Como fazer para encontrar outra tradução para sacrifício? Ofício do sagrado?

Trabalhar neste ofício dá prazer! Muito prazer! A sagrada labuta diária de cuidar da plantação retirando as ervas daninhas, é compensa.dor. Mostra-nos processos de super.ação. Faz-nos sentir o único poder capaz de nos manter vivos: o de nos alimentar com nossa própria potência de realização.

Observar as flores, colher os frutos e saboreá-los ao final do dia, nos faz sentir o pulsar dos movimentos vitais.

Como diz um certo anúncio:”não tem preço!”

No meu caso particular, dentro do fato citado no prefácio, ainda existe o exercício de percorrer longos caminhos a pé, testando movimentos articulares que há bem pouco tempo estavam muito debilitados e machucados (tanto quanto minha alma). Ver-me e sentir-me locomovendo-me sem dor, podendo harmonizar ritmos internos/externos é motivo de muitos aplausos para mim; eu os produzo.

Somando a isto, como venho recebendo belas orientações do Dr. Paulo Gusmão, incluo em minhas autopesquisas o fato tentador de percorrer odores e visões que acordam tentações remetendo-me a um passado que não quero mais in.mim. São drogas em forma de guloseimas, prontas para corroerem minha saúde. Benditas experiências com dependentes químicos como terapeuta que, transformadas em conhecimentos, vêm em meu auxílio enquanto percorro a rua Voluntários da Pátria. Sou voluntária no cuidado com os seres humanos a começar por mim mesma.

Tarefa para esta brasileira que não desiste nunca, neta de Cléo e Sylvia.

Vale muito a pena!

Que venha o parto  do próximo capítulo.




  • Capítulo III – Nunca haverá reconhecimento à altura.


A palavra reconhecimento sempre me aponta o dedo dizendo: ”Conheça-te a ti mesma” “Reveja seus atos, repense suas idéias, reorganize seus sentimentos, relembre suas ações revisitando as reações; reconheça o minuto recém experimentado no momento que está vivendo. Sinta o recuo das águas para perceber o tamanho da onda.”

 Quando atriz, participei da montagem do Allegro Desbum ...” de Oduvaldo Vianna Filho ( Vianinha). Belo texto, peça ousada com direção corajosa de José Renato. Convivi durante um ano com artistas incríveis dentre eles Francisco Milani, Berta Loran e Gracindo Junior com os quais minha personagem (Ênia) contracenava mais.Fui responsável pela preparação corporal do elenco e, ao substituir repentinamente a Neila Tavares por motivo de doença, acabei ficando seis meses em cartaz no Teatro Ginástico, RJ. Naquela época a folga era apenas às 2as feiras sendo que aos sábados e domingos dávamos duas sessões. 
Portanto, aquele belo texto era repetido 9 vezes por semana.

As palavras, com alguns acréscimos ou supressões devido a presença de censores, eram as mesmas. Mas a intenção, dependia do que se captava da platéia. Era necessário absorver o retorno e reconhecê-lo nas sensações corpóreas para dar o “tempo” (time) exato da emoção.

Tudo brotava fluidificante no momento da ação, porém muitos ensaios e árduo trabalho eram necessários para produzir fluxo “natural” aos sentidos; treinava a razão e a lógica da personagem para assumir alguém que não ouvia, via, percebia ou sentia como eu.

De minha avó Céo vinha a habilidade cênica. Da Sylvia a força simbiótica da religião xamânica que ela professava. Fui aprendendo a conviver com personagens; filha, atriz, bailarina, professora, coreógrafa, sobrinha, prima, colega, mulher e mãe. Enfim, infinitos sensores processando meus movimentos vitais em diversas direções.

Realmente nunca haverá reconhecimento suficiente para suprir os anseios de das personas. Todas desejosas de serem acariciadas, acolhidas, compreendidas, entendidas, amadas. De onde brotava o desejo? Do meu desejo de ali estar. Os anseios? Dos movimentos expiratórios. A angustia era causada pela in.Satisfação proveniente da in.Capacidade de aprender a aprender comigo mesma.

Hoje, relendo o que acabo de redigir (ou será re.digerir?), olho o caminho percorrido pensando na “altura”.

Qual será a altura do reconhecimento?

Será relativo à grandiosidade do aprendizado?

Quando me vejo diante de alunos, clientes, amigos ou parentes e revejo-me nas suas conquistas das quais conscientemente participo de alguma forma, sinto-me “alta”. Imensa. Gigantesca às vezes. Mas, quando falo em reconhecimento e pessoas me vêem como sendo alguém que espera do outro algo que não seja partilha e comunicação verdadeira, humanidade ou respeito aos meus sentimentos, nestas situações torno-me minúscula. 

Encolho-me para que a onda passe.
Há um tempo sofria, ao me recolher adoecia; conseguia atenção cuidado e aplausos com a doença. A cena ficava perfeita!

Mas nunca fui muito chegada a drama; sempre gostei mais de alta comédia, gênero teatral dos mais difíceis por ser aquele onde exercitamos o ponto do equilíbrio.

Ênia, em sua cena de despedida, depois de conseguir se libertar da dependência do amor doentio por Abujanra, dizia mais ou menos assim: “Vim me despedir” “Vai pra onde?” “Vou viver minha vida.”

Pode até ser que as palavras não fossem estas mas a emoção da cena ficou gravada no fogo de meus ossos e a sinto até hoje a cada amanhecer. E, despertando-me, busco sempre  reconhecer o Allegro ma non troppo do grande desbundaccio que foi e continua sendo meu belíssimo país, nem um pouco reconhecido em seus valores reais.

Em tempo: o título original que Vianinha colocou na peça foi “O Allegro Desbundaccio” sabe-se lá por que, a censura trocou para “Allegro Desbum...” 

Deve ter sido para aliviar o risco de vida que corríamos ao dizer o que constava do texto original sob mira de revólveres da política vigente na época. Aliviar? Ou instigar ainda mais nosso desejo de transgredir as ordens?
De qualquer forma, ajudou-me muito a continuar na transgressão a fim de encontrar prazeres que não têm preço; que me pagam com as moedas invisíveis do amor à arte e à tudo que ela proporciona para minha ânima.

Adoro me animar!