10 de março de 2014

Dançando em meu Túmulo - Gelsey Kirkland

 
 
Por alguns anos a leitura deste livro me orientou e guiou. O trecho que reproduzo abaixo ajudou-me por diversas vezes a reler minha incapacidade de ver nos outros, o espelho de mim mesma. Aos poucos fui somando ao fato de ser bailarina o de ser filha única (sem irmãos para espelhar meus pais). Com uma leitura empobrecida de mim mesma, fui buscando meus processos individuais e solitário de descobrir-me. Moitakuá assim nasceu.
Que a leitura a seguir possa auxiliar jovens talentos de hoje a encontrarem suas belezas interiores, espelhando-as, de maneira harmoniosa, para as plateias mundiais.( Moema Ameom)

" Ao longo das fases iniciais da minha carreira o espelho era meu nêmese, sedutor até o ponto da dependência. Passar para o outro lado do espelho significava confrontar-me com uma sósia que expunha todas as minhas falhas e salientava todas as minhas imperfeições físicas. Durante um certo tempo, a imagem na minha cabeça entrava em conflito com a imagem no espelho. Até que a oposição entre as imagens fosse resolvida, eu me via como um pedido de desculpas ambulante, incapaz de atingir ou manter a minha ideia constantemente apurada de beleza física.

Com todas as inseguranças intensificadas, tornei-me o meu pior crítico, embarcando numa procura estética de perfeição, no final, curasse as feridas que eu mesma me infligira. Tentando aperfeiçoar  tanto a minha aparência quanto a qualidade de meu movimento, não percebi uma contradição. Enquanto eu continuava a me educar, meu amor e raiva casaram-se dentro da minha personalidade.

Permaneci criança. Trabalhava e vivia em isolamento, numa solidão quase absoluta que, hoje, vejo totalmente desnecessária. Eu me enganava, às vezes deliberadamente. Eu não estava só.

As intermináveis repetições de exercícios na barra diante de um espelho refletem uma imagem deformada que muita gente tem do balé, uma imagem compartilhada por muitos dançarinos. O lado físico da disciplina inclui um certo grau de tédio, acomodação e dor. Porém as horas de ensaios não contam se comparadas ao terror emocional que às vezes atormenta um bailarino quando estuda o seu reflexo no espelho. Esta ansiedade não se de deve à simples vaidade ou medo de rejeição profissional.

Como na lenda de Narciso, o belo jovem que se apaixona pelo próprio reflexo, o relacionamento do dançarino e sua imagem no espelho é uma intimidade de poder extraordinário e consequências potencialmente muito perigosas. A   dos dançarinos acaba por parecer afogar-se em suas próprias imagens, empurradas por forças invisíveis. As dimensões da tragédia são reveladas apenas quando vidas e personalidades são destruídas. Até então, os danos permanecem invisíveis.

Desconfio que todo dançarino sente o espelho de um modo singularmente pessoal, embora muitos talvez não deem conta do poder que ele exerce sobre suas vidas e como ocorreu aquele estado de servidão artística. Seguramente poucos levaram o relacionamento aos extremos do começo
 da minha carreira, e um numero ainda menor deu um jeito de inverter o domínio do espelho.

Como instrumento de ensino primordial para a dança (*), o espelho fomenta a ilusão de que a beleza é apenas superficial, que a verdade encontra-se apenas na plasticidade do movimento. Parece preferível imitar do que criar. A imitação pode ser variada para criar a impressão de originalidade. Existem infindáveis possibilidades para quebrar o molde humano em padrões inusitados. Ousar dançar não mais envolve risco, virtuosismo e força de convicção. O dançarino pode ganhar aprovação por passos que não exigem uma decisão real em termos criativos ou de composição.

O dançarino é treinado para observar, para entrar no mundo do espelho até que nem seja necessário olhar. A medida que se transforma num reflexo cheio de si, não aprende a testar a beleza, a descobrir sua vida interior. Desta forma, o espelho aprisiona a alma acabando por quebrar o espírito criativo. Um dançarino desses é criado, mas não sabe criar. Sem sucesso e popularidade, a situação fica ainda mais precária. a qualquer momento, com mudanças caprichosas da moda, uma verificação no espelho pode revelar uma tragédia...que ele ou ela foi criado para nada." (pags.71/72) 
 
(*) Eu, Moema, considero o espelho totalmente dispensável para o ensino da dança. Sua utilização surge apenas em alguns momentos para intensificar a comparação entre a observação interna (esta sim indispensável) e a externa, com a intensão de reconhecer os níveis de olhares de uma única expressão.

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